Mutações




Mergulhei em brumas cinza e frias, perdida em meio de fiapos de luz. Fiquei sem noção de tempo, espaço e lugar. Não estava em parte alguma e, sem relógios ou ampulhetas, minhas rotas não obedeciam aos princípios de começo e fim.

Nesse mundo atemporal, com pedras de cristal miúdo confeccionei a trama de um manto e com ele envolvi meus ombros cansados. Brilhei loucamente ofuscando o sol! Com assas nos pés voei por sobre cursos d' água, vi estrelas caindo e as recolhi. Eram leves, etéreas, pura luz.

Deslizei no clarão do luar encharcando-me de prata. Cintilei. Fui deixando para trás todo fardo humano: não havia mais dores, mágoas, desejos, paixões. Tornei-me um halo púrpura e habito permanentemente nas auroras e poentes. Fiz-me eterna.

Calar, calares...





Calar nem sempre é consentir. Muitas vezes calamos como forma de contemporizar. É o que acontece quando rola no ar certa tensão e, para que as coisas não descambem em uma discussão acalorada, calar é a melhor estratégia.

Também há o calar para poder ouvir o outro. Tal atitude, rara, por sinal, encerra acolhimento, cumplicidade e doação.  Na maior parte do tempo queremos ser ouvidos. A escuta de coisas que afligem as pessoas ao nosso redor é um hábito pouco desenvolvido entre nós.

Entretanto, a mais difícil forma de calar é aquela em que guardamos a nossa voz movidos pela dor, pois sabemos que naquele exato instante nenhuma palavra cabe bem. Falar movidos pela tristeza é deixar às claras a alma da gente de forma desprotegida, sem muros e nem véus. Não calamos por consentimento nesta situação, mas por medo de nos expor.



Em tempo




Quando a tarde caiu como uma manta dourada encobrindo a cidade, senti meu coração encoberto também por uma calma estranha, que foi tomando conta dos meus pensamentos. Fechei os olhos vagarosamente com medo de perder os últimos reflexos do dia que ia saindo de cena. De longe vinha o som abafado de uma melodia antiga que me transportava a outra época.

Ultimamente dera para escarafuchar o passado. Volta e meia pegava-me repetindo: “No meu tempo...”... Mas será que haverá de fato um “no meu tempo”? É engraçado como usamos essa expressão para mostrar coisas comuns nos dias de hoje e que eram muito diferentes há 20, 40 anos. E fazemos isso, geralmente, cheios de uma empáfia como se no tal tempo lá tudo fosse muito correto e nada acontecesse fora dos padrões sociais aceitáveis. Na verdade, naquela ocasião eu ouvia essa mesma expressão das pessoas mais velhas.

Pensando sobre isso entendi que cada dia é um tempo único, especial sem a mínima chance de repetição. Posso amanhã pegar o mesmo transporte para ir ao trabalho, mas as pessoas naquele ônibus, ou metrô serão outras. Executarei as mesmas tarefas no serviço, mas o clima terá mudado, o meu humor será diferente, os odores não serão idênticos. Jamais haverá um dia exatamente igual ao de ontem, portanto cada hoje será o “no meu tempo” de amanhã. Ou melhor, não existe “no meu tempo”, porque o tempo não tem senhores, ele se desenha e redesenha sem que seja necessária a nossa ação direta e a ele nós pertencemos. Somos viajantes de um tempo cuja irrevogabilidade é a única certeza absoluta.

Separação





Sinto falta da sua presença. Há um vazio diário no qual mergulho sempre que não há nada para fazer. É meu refúgio do mundo, da realidade, da vida. Esse aparente vazio é meu jardim secreto onde posso ser apenas eu mesma. Não há normas, nem horários, nem remorsos. Entretanto nem mesmo assim encontro você. Por mais que tente subverter a razão e me perder na loucura da saudade não consigo nos ver no passado. 

Há uma linha intransponível impedindo a minha passagem. Busco algum coelho branco apressado que me guie por um mundo sem começo e nem fim, mas não sendo Alice, não há país das maravilhas para mim... Sei que você está em algum lugar, quero achá-lo, mas não sei onde lhe perdi. Evoco seu rosto, seus olhos, sua boca, mas em minha memória há apenas um vulto, uma espécie de avatar: é a sua representação, mas nada se assemelha ao homem que amei. 

As lembranças são um amontoado de flores sem perfume. Para mim são inúteis, pois não resgatam a felicidade e nem diminuem a solidão. Não há bilhetes, nem papel de bombom guardado entre páginas amareladas de livros velhos, nem fotografias de outrora em que estejamos juntos. Não há nada. Resta-me apenas a sensação de que em algum lugar, não sei bem onde, nossas mãos entrelaçadas separam-se. Cada um de nós foi para um lado, seguiu seu caminho. Sem adeus nem até breve.

Águas de sal








Quando uma saudade entra sorrateira e se instala em minha vida,
um tremor agita a alma e o coração bate com vagar, sufocado pela angústia.
Não há remédio para dores da alma, são dores abstratas no vazio de uma vida.
A falta futura do que tenho hoje é absurdamente inverossímil...
Em fluidos de solidão perco-me. Em vestígios de angústia não me reconheço.
Sinto que alguma coisa se esvai entre sombras diáfanas e brisas leves.
Um sopro leve de tristeza semitonada enche de lágrimas meus olhos
Choro baixinho, sem soluços, nem mágoas. Choro por um adeus...

Vida em gris





Percebi que não havia luz naquela manhã, o céu sem nuvens apresentava-se cinzento e esta monocromia tirava-me o ar. Debatia-me num sofrimento onde a angústia era a dor maior. Chegara a um ponto da vida em que não valia a pena fazer balanços e nem especulações. Nada mais era relevante. Não havia mais para que... nem para onde... tampouco quem... Restara o nada e o absurdo de saber que isso era o fim. Era assim que coisas terminavam, c’est  la vie! Andava-se durante anos por estradas e veredas ora belas, ora feias, alegres e cheias de risos, ou tristes e com gosto de lágrimas. Não havia uma estrada reta, mas uma sucessão de curvas sinuosas. Numa curva qualquer perde-se o chão, e o corpo despenca num espaço infinito, vazio, frio... É assim que se morre? Não! Não é o fim da vida que rouba a cor e o sentido de tudo, é a morte dos sonhos tão somente...



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