Tempo de Framboesas




A estrada perdia-se na neblina matinal.  Por conta do denso nevoeiro, enxergava-se alguns metros à frente. Os poucos carros que passavam, iam em baixa velocidade, cautelosos. O ar frio da madrugada deixara pequenas gotas de orvalho nos pés de framboesa e ao pegar as pequenas frutas vermelhas, meus dedos enregelados puxavam-nas suavemente para que soltassem intactas dos finos ramos.



Era delicioso levar uma framboesa vermelha e linda à boca e sentir o sabor adocicado, a maciez. Naquele lugar elas nasciam livremente em meio ao matagal e eu repetia aquele ritual quase todo dia: perder-me em meio à bruma em busca dos pequenos rubis comestíveis. Meticulosamente afastava o mato que crescia à beira do caminho, procurando encontrar framboeseiras escondidas. Os pequenos espinhos da planta, em muitas ocasiões, furavam-me os dedos e as gotas de sangue misturavam-se ao vermelho do sumo da fruta em minhas mãos enodoadas.

Não tinha pressa. Como disse o poeta “o melhor o tempo esconde, longe muito longe...”. Portanto era com muita calma que adentrava pelo mato, atenta aos frutos cônicos pendurados nas pontas das hastes. Sempre voltava para casa com uma cestinha cheia, porém as framboesas maiores e mais doces, essas eu degustava durante o passeio.

A beleza natural daquele lugar era extraordinária! Em vários trechos havia filetes de água escorrendo do alto da serra onde o mato dava lugar à rocha. Samambaias, avencas e orquídeas misturavam-se a milhares de outras espécies nativas, cujos nomes desconhecia. Era normal, portanto, que na volta eu respirasse alegria e paz.

Naquela manhã, em meio ao meu regresso a casa, abraçada à cesta cheia de doces frutinhos, um carro passou por mim em altíssima velocidade e, instantes depois, ouvi um barulho enorme. O motorista perdera a direção ao fazer a curva e chocara-se com a montanha. Da porta parcialmente arrancada escorria um filete vermelho que, aos poucos, ia penetrando na terra bem próximo a uma framboeseira carregada de frutos. Não havia mais nada a ser feito. Eu e minhas rubras framboesas saímos dali mais pálidas. “O melhor o tempo esconde, ao longe, muito longe...”.



Caixa de Pandora




Abri aquela caixa amarelada pelo tempo e comecei a remexer o passado. Ali estava guardada uma parte de minha vida. Durante alguns instantes fiquei apenas olhando, não tinha certeza se queria remexer em lembranças já quase perdidas no tempo e na memória. Entretanto, um pequeno envelope azul chamou-me atenção. Não havia nada escrito. Ao abri-lo encontrei a fotografia de uma garota de mais ou menos oito anos. Parecia feliz, pelo menos havia um sorriso nos lábios e o brilho dos olhos transmitiam aquela serenidade só encontrada no olhar das crianças.

Em cada pedaço de papel havia o registro de acontecimentos passados. O cartão postal em preto e branco da cachoeira Véu da Noiva veio carregado de saudade. Lembro perfeitamente do dia em que o comprei. Tínhamos passado um dia maravilhoso e ao voltarmos paramos numa banca de revistas e lá estava o postal. Levei-o comigo.

Encontrei por baixo de um monte de cartas, um caderninho de endereços. A capa de cetim preto trazia um dragão vermelho e dourado pintado à mão...  Meu Deus! Há mais de quarenta anos não via aquela agenda. Passei os dedos levemente no tecido tentando resgatar o passado por inteiro através desse toque. Aquelas páginas estavam povoadas por pessoas que em algum momento tiveram seus caminhos entrelaçados ao meu. Fechei os olhos e deixei as lágrimas rolarem livremente. O que mais doía era a certeza de que jamais teria de volta essa parte da minha vida.

Nesse momento decidi não olhar mais nada. Fui colocando tudo de volta na caixa. A menina da foto não tinha mais a pele acetinada, a beleza, o riso inocente. O tempo deixara suas marcas e fizera seus estragos. Apesar de tudo, foi com alívio que coloquei aquela parte da minha vida de volta no lugar onde deveria estar. Passado é passado. Tudo ali foi importante, claro, mas não era mais novidade. Melhor do que ficar chorando lembranças boas ou más era aguardar as surpresas e as novidades do amanhã. 

Viajantes do Tempo



Domingo de céu nublado... Pingos de chuva... Barulhinho de água escorrendo pelos beirais... A chuva são lágrimas do céu que purificam a Terra. Quando ela vai embora tudo fica mais reluzente, mais bonito, há um frescor natural que revigora a natureza.

Quando choramos acontece mais ou menos a mesma coisa. Também somos purificados. Ao chorarmos de alegria, o coração fica mais leve, o brilho dos olhos aumenta, a pele fica mais fresca e acetinada. É o efeito natural da felicidade. Se forem lágrimas de tristeza, sempre trazem um ensinamento. Acima de tudo, servem para lembrar a nossa condição de humanos: estamos aqui apenas passando uma chuva...

De toda forma, precisamos aprender com as alegrias e as tristezas, pois são dois pólos da nossa existência e a maneira como lidamos com ambos, forma o mapa da nossa vida. Como viajantes do tempo seremos grandes ou medíocres, fortes ou covardes, alegres ou infelizes, amorosos ou egoístas conforme as lições tiradas de cada lágrima, de cada riso, de cada fração de segundo da vida.

Fiat Lux[1]





A única luz que entrava naquele quarto vinha através de uma fresta do telhado. Um raio de claridade descia do alto ao chão e era possível ver grãos minúsculos de pó suspensos num ir e vir ininterrupto. Deitada na pequena cama olhando esse ponto luminoso, era como se estivesse vendo tudo de um lugar fora de meu corpo. Via-me ali inerte, olhos abertos fixos na tênue claridade.

Os pensamentos atropelavam-se como se empurrados por uma onda imensa de saudade e angústia. Imagens de tempos idos vinham em flashes, entrelaçados no tempo e no espaço sem obedecer a uma ordem cronológica. Alguma coisa se rompera e trouxera o caos, esse caos absurdamente doloroso, sufocante.

O que fazer quando todas as perspectivas diluem-se num átimo impreciso, sem deixar rastros nem possibilidade de retorno? Como lidar com ausências insupríveis? Que fórmula mágica seria capaz de subverter o imenso vazio daquela vida pautada em metáforas subtraídas de um conjunto de ideações? Onde encontrar respostas para inquietações que teimam em buscar um elemento resolúvel?

Inesperadamente o raio de luz projetou-se em meu rosto, obrigando-me a fechar os olhos. Fui envolvida numa mornura gostosa como colo de alguém muito amado. Um conforto, a princípio sutil, foi tomando meu corpo, minha alma, meu coração. A gelidez, antes dona de mim, aos poucos foi dando lugar a algo que penetrava como fagulhas e trazia-me de volta à realidade. Compreendi que a vida é isso, saudades, começos, finais, recomeços, risos, lágrimas, conquistas, fracassos, amores, desamores, escuridão e, no fim, a luz. Não importa que seja apenas um pequeno raio vindo de uma fenda nas telhas, mas é luz e na claridade enxergamos melhor e podemos entender alguns dos mistérios desse que é o nosso maior mistério: a vida.




[1] Fiat Lux: Expressão latina que significa “faça-se luz”.



Aquarelas do passado







Percebi o tamanho da minha saudade no momento em que não pude mais calcular quanto tempo fazia que determinadas coisas haviam acontecido. Essa impossibilidade de especificar o quando foi, de certa forma, aterrorizou-me, pois senti-me despida de meu passado. Se já não podia encontrar o quando, era bem provável então que metade daquilo que eu chamava de lembrança, nunca tivesse, de fato, ocorrido.


Com o coração aos pulos, comecei a remexer gavetas há anos trancadas, em busca de pistas. Quem sabe em algum pedaço de papel amarelecido pelo tempo, encontrasse rabiscada alguma informação preciosa, uma palavra carregada de informação exata, qualquer cartãozinho importante. Nunca fui dada a fazer diários e agora, tardiamente, arrependia-me.


Encostada na parede, olhos fechados, vislumbrei a fachada da escola que estudara. Um prédio antigo de dois andares com janelas em estilo colonial pintadas de verde, uma alta palmeira no jardim. Crianças e adolescentes entrando pelos portões num burburinho entremeado de risos. Sabia que eu estava no meio deles, mas não conseguia me ver. Em não me vendo, era impossível determinar se era uma menina ou uma adolescente. Estudara a vida toda ali. Que momento seria esse?


Em meio a toda essa assincronia, comecei a perceber que também as lembranças têm prazo de validade. Chega um momento que elas começam a se transformar em borrões esmaecidos, pinceladas em guache quase apagadas na memória. O que resta é a saudade não se sabe bem de quê, de coisas que aconteceram não se sabe quando


Perdas e ganhos



Estou contabilizando o ano de 2011. Afinal, ele já se foi desde ontem e é hora de dar balanço. O que ganhei, o que perdi, o que fiz, o que deixei de fazer, o que protelei para o ano que vem, o que dei, o que recebi... são tantas coisinhas nessa linha aí, que se continuar terá a lista, da lista... paremos, pois.

Os ganhos

Ganhei experiência de vida, sem dúvida nenhuma. Aprendi através dos meus erros o que não farei novamente. Ganhei também sabedoria, discernimento. Aprendi a compreender melhor o ser humano. A perceber o quanto somos todos meio patológicos, com neuras, maniazinhas inúteis, idiossincrasias descartáveis. Haverá alguém normal? Se houver, o último a sair jogue fora a fluoxetina..

As perdas

Perdi a esperança em encontrar políticos honestos neste país. Se alguém souber de algum, passe-me um e-mail avisando, afinal é um animal raro, em vias de extinção que precisa ser admirado. Perdi a vontade de viver em alguns momentos, mas como não sei nada sobre o lado de lá, prefiro ficar por aqui mesmo. Aqui pelo menos a gente já conhece os prós e os contras...

Balanço final

Vou continuar fazendo planos para 2012 — dos quais muitos não sairão da fase hipotética —, continuarei com as dívidas contraídas em 2011, sem saber como pagá-las, há de aparecer um jeito. Estarei um ano mais velha, com mais rugas, mais fios de cabelos brancos, mas com uma certeza inabalável: viver ainda vale a pena.

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