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Questão de tempo







Quando você me perguntou: “Já vai?”, respondi que sim sem a mínima noção que seria nossa última tarde juntos. Saí tão feliz, fazendo planos, pensando em como aquele edredom primaveril ficaria lindo no meu novo quarto, as almofadas combinando, o papel de parede dando um tom moderno e sóbrio ao mesmo tempo. Seria interessante mudar também o piso, aquela lajota estava tão gasta já! Quem sabe também trocando a posição da cômoda, a chaise longue ficasse mais perto da janela e, portanto, teria mais luz natural para minhas leituras.

Cheguei em casa com a cabeça fervilhando de ideias e o coração amuado de saudade e olha que só fazia um pouco mais de duas horas que estivéramos juntos. Mulher é assim mesmo, bicho bobo. E apaixonada então! Apaixonada perde a noção das coisas, fica cega perante às evidências, acredita em tudo que a pessoa amada fala, acha graça em toda piada sem graça que ouve. Pois foi prenhe dessa bobajada toda que entrei cantarolando como se tivesse visto um milhão de passarinhos verdes.

Precisava checar se minha colega do trabalho mandara a planilha que o diretor pedira  e liguei o computador. Foi só então que descobri. Havia uma mensagem em meu e-mail de apenas uma linha e meia: “Sei que você nunca vai entender e nem me perdoar – nem espero que faça isso – mas pra mim não dá mais”.  Como assim? Como não dá mais? Então aquele “já vai?” na verdade era uma despedida? Era um já vai tarde? Era um ponto final sem explicação? Era uma despedida sem adeus? Li, reli... reli mil vezes.

Não procurei saber os motivos daquele lacônico término. Começou sem aviso e assim findou. Aliás, a gente passa o tempo todo esperando por isso: que acabe...  seja por nossa decisão ou por decisão da outra pessoa. Mas dói! Como dói! O pior é que não tem analgésico para mal de amor. A gente tem que aguentar até que um dia ela vai diminuindo, diminuindo, até passar de vez.  Infelizmente essa é uma experiência que não deixa lição, não proporciona aprendizado. Quando chega um novo amor começa tudo de novo, é apenas uma questão de tempo.

O Susto





A BR-116 acabara de ser aberta e muitas fazendas da região foram cortadas ao meio pela “federal”, como era e ainda é chamada até hoje. Não tinha sido diferente com a Fazenda Grotão da Serra, tanto que a fonte onde pegavam água para as necessidades gerais da fazenda, lavar roupa e tomar banho ficou muito próxima à rodovia.

Por aquela ocasião, corria à boca pequena pelo sertão que o fim do mundo estava próximo, a Besta-fera com o número 666 na testa correria a Terra matando o povo, destruindo tudo. A besta apocalíptica fazia tremer até os mais valentões. Na maioria das casas havia uma cruz pintada por detrás das portas de entrada, ou então, feita com as palmas da missa de Ramos pendurada num prego. Na Grotão, para maior segurança, havia os dois tipos de cruzes, afinal seguro morreu de velho...

Na fazenda moravam, além dos empregados, as proprietárias – duas “moças velhas”, nome que se dá às mulheres que nunca casaram e que, se presume, permaneceram virgens –, alguns parentes e agregados que completavam o clã familiar.

Certo dia, como de costume, as duas senhoras saem à tardinha para o banho na fonte. Já haviam se despido quando ouviram um barulho.
— Tonha, que é isso
— Sei lá! Um barulho esquisito... Parece um ronco de algum animal!
Maria arregalou os olhos:
— Animal! Valha-me Deus! Se foi isso mesmo então é um monstro!

Resolvida a tirar a limpo o tal barulho, Tonha – nua como nasceu – sobe na cancelinha da fonte e olha ao redor. No lusco-fusco da tarde ela avista aquele animal imenso, dois olhos monstruosos brilhantes como fogo numa carantonha enorme. Trêmula ela faz soar a trombeta do juízo final.
— Acuda-me, meu Pai do Céu! Maria, é a Besta fera! Vamos correr!

Histéricas, totalmente apavoradas saem as duas em desabalada carreira, peladinhas, peladinhas e ganham a estrada. O motorista do caminhão, veículo praticamente desconhecido por aquelas bandas, tomou um susto enorme ao ver as duas em disparada. Primeiro ele pensou que eram loucas, depois percebeu que as coitadas estavam apavoradas mas era com o veículo. Resolveu ajudar colocando a cabeça para fora da janela, gritando:
— Não corram, não corram que é um automóvel!
Ao que Tonha virando-se para a irmã informou:
— Tá vendo!? A Besta tá gritando: “Sebo nas canelas, corram se não morrem!

Maria saiu da estrada completamente desorientada e Tonha sem aguentar mais caiu desmaiada. O motorista assustado para o caminhão, enrola a velha numa toalha, põe na boleia e ruma para Tucano. Ali o médico local reconhece a vítima e trata de medicá-la. Maria foi encontrada dois dias depois encolhida numa moita de espinheiro, olhos esbugalhados em estado de choque. Só veio se recuperar quase um mês após o ocorrido.

Nota: Escrevi esse texto, e alguns outros que publicarei aqui posterirormente, em 1994. Durante todos esses anos ficou guardado num envelope esquecido no fundo de um baú. O fato narrado foi real, tanto que o médico que atendeu as protagonistas foi Dr. Theotônio Martins, ilustre tucanense, cujo nome está inscrito na história do nosso município.

Alhures






Venho de uma terra não muito longe, nem muito perto, entre as serras do mundo, um lugar esquecido em tempo e espaço, esquecido em si mesmo.

Sou de um povo sem nome, de caras distintas, de uma mesma família que briga, embirra, se ama e se xinga. De gente espontânea, de gente inventiva, que cria e sonha para se libertar das algemas monótonas chamadas 'pé no chão'. De pessoas com rostos cansados em seus traços fortes que ainda rezam e benzem-se, chamando por Deus e por uma santa matriarca nos raros momentos de êxtase, espanto e aflição de uma terra que conjuga magistralmente seu pretérito perfeito.

Sou de um lugar de gente que ri, ri de si, ri dos outros, gargalham de tudo, como num imenso circo, porque lá, em tudo há riso e, se não há, se inventa. De gente dada a ‘maroquices’, que cria sem pudor e aumenta sem mais problemas, porque "a vida dos outros foi feita para a arte de se falar".

Nas ruas, paralelepípedos irregulares, conversas miúdas em casa e nos bancos das praças entre suas estátuas. Postes sem luz, cheiro de pipoca, árvores mal podadas. O silêncio reina.

Sou de um ambiente em que impera o astro rei sobre um manto de azul sem igual, impondo a seus súditos o forte ardor da vida. Sou de lá, onde a caixa d’ água é um monumento, um cartão postal, um símbolo maior, um clamor ao divino, pois onde há água, há alegria.

De onde vim, todos querem debandar, mas por força das raízes profundas das origens que são mais fortes que os galhos quebráveis da vontade juvenil, elas desejam regressar um dia, visitar um dia, viver um dia.

De onde venho, tudo é simples, tudo é velho, tudo é lágrima, tudo é fé, tudo é cor, tudo é riso e tudo é nada.

Mas aquele nada é meu TUDO.

Astério Moreira de Santana Neto

O texto acima foi escrito por um ex-aluno meu. Mais uma vez está provado que a criação sobrepuja o seu criador. O estilo, a fluidez e a forma textual provam que minhas aulas de Português além de terem sido muito bem aproveitadas, foram coroadas lindamente pela capacidade criadora do jovem autor. 


Um quarto de mistério





Aquela porta sempre trancada trazia em si um quê de mistério, uma sensação de irrealidade que atiçava a imaginação. Ao passar por ela os arrepios eram inevitáveis. Nunca perguntei o que havia ali e, por longuíssimos anos, segurei minha curiosidade, não sem muito custo. Passava-me pela cabeça cenas horripilantes de filmes de terror e suspense. Elucubrava mil situações bizarras encerradas entre aquelas paredes. Mas o engraçado é que assim que saí daquela casa esqueci totalmente disso. Passei décadas sem essa lembrança que fora varrida da minha mente fantasiosa assim sem explicação.

Teci minha vida longe daquele lugar. Construí castelos de sonhos, rodei o mundo, vi tantas coisas, enchi o coração de risos, choros, amores e desamores. Fui palmilhando a estrada que me foi reservado nesse latifúndio de meu Deus. Amadureci. Chegaram as primeiras rugas, os primeiros fios de cabelos brancos e nesse afã de me manter viva, recebi a notícia de que titia morrera.

A casa não mudara nada. A mesma varandinha colonial com balaústres de ferro batido, as salas imensas de pé direito altíssimo. A mobília de madeira escura guardava a imponência de outrora. Os sofás e poltronas de veludo gasto guardavam uma saudade antiga de tempos idos e mortos, onde sinhazinhas de pele quase transparente sentavam-se eretas numa elegância imposta pela moda da época.

Andei lentamente pelos cômodos recordando o tempo em que morara ali com meus pais. O quintal enorme cheio de árvores estava praticamente do mesmo jeito de quando eu me fora há tantos anos. A sombra fresca das mangueiras trazia um conforto e uma doçura tal que fui invadida por uma saudade gostosa, saudade essa carregada de alegria por ter sido tão feliz  naquele lugar.

Entrei pela porta da cozinha e passando pelo corredor que levava à sala vi a porta! O coração deu um salto tamanho que senti as batidas pulsando na garganta. Coloquei a mão na maçaneta e virei devagarinho. Estava aberta. Fui entrando, mas as janelas fechadas faziam com que a penumbra tomasse conta de todo o aposento. Já estava quase no meio do  quarto quando dei meia volta, saí e fechei a porta. Se a dona mantivera-o fechado por tantos anos, com certeza tivera motivos fortes para isso. Seus segredos foram tão bem guardados, seus amores e desamores nunca revelados, não mereciam essa invasão promíscua. Se desilusões, alegrias, pecados, amores foram guardados por toda uma vida, não era justo torná-los públicos.  Contratei uma firma de faxina e dei ordens para que todo papel e toda fotografia encontrada fossem passados na guilhotina. Quanto às roupas e móveis seriam doados a uma casa de repouso. Aquele quarto deveria permanecer assim como sempre fora: misterioso.





Céu de quase noite

Quando olho o céu de quase noite guardando um pouco de luz
Reconheço-me nesse instante, pois me sinto entre sonho e realidade.
O sonho é sempre luminoso, enche-me a alma de esperanças generosas.
Já a realidade é a certeza de que vivo entre mundos de mistério.
Não posso ter certeza em qual dos mundos estarei nesse ou naquele instante.
Posso dançar em jardins de primavera explodindo em cores,
Ou chorar silenciosamente em vãos de escadas sombrias.
Minha vida tem sido assim: um céu de quase noite guardando um pouco de luz.

A Santa da Chuva






Quando Teresa desceu do ônibus ao meio dia em ponto em frente à pequena praça, um raio riscou o céu azul livre de nuvens e partiu ao meio a centenária algaroba, única árvore ainda com folhas no meio do jardim. O estrondo ensurdecedor, a fumaça, o cheiro de madeira queimada remetiam a uma catástrofe apocalíptica. Passado o estertor, seguiram-se alguns minutos de silêncio total, como se não houvesse mais viva alma naquela remota cidadezinha. A impressão que dava era que seus cinco mil habitantes haviam também sido fulminados pela descarga elétrica inexplicável.

Após esse instante único de fim de mundo, portas e janela começaram a se abrir despejando pessoas aturdidas, aparvalhadas que gritavam e corriam pelas ruas sem saber bem o que havia ocorrido. Canteiros despedaçados, bancos jogados ao longe, plantas enegrecidas e as metades da algaroba lançadas a distância. compunham o cenário de destruição. A alguns metros da antiga praça o ônibus jazia tombado com o motorista morto ao volante. Era a única vítima fatal uma vez que fora Teresa, nenhum outro passageiro viera para aquele lugar, todos os outros haviam descido na única cidade antes de Redenção. Ali era o fim de linha... Talvez o fim de tudo, o fim do mundo mesmo. Redenção era um lugar miserável, esquecido por todos, passando por um longuíssimo período de secas. Areia, calor e fome formavam um triângulo de morte. Seis anos sem cair nenhum pingo de água...

De repente alguém grita: “Há uma moça ali em pé! Parece uma estátua! Não se move e nem nada!”. Era Teresa. que se encontrava intacta no mesmo lugar em que descera do ônibus! Nenhum fio de cabelo fora do lugar, nem sujeira nas roupas, nada! A boca ainda estava pintada de batom rubro, o colo à mostra no decote provocante sequer arfava com mais rapidez, era como se nada houvesse acontecido. Apenas os olhos pintados estavam um pouco mais abertos. Um menino de nariz escorrendo e roupa suja informou: “Eu vi a moça descer e na mesma hora veio o raio! Tava na janela de casa e vi, juro que vi!”.

As pessoas começaram a se aglomerar em torno de Teresa e, ao mesmo tempo em que se aproximavam da moça desconhecida, o céu foi se enchendo de nuvens grossas, cor de chumbo, carregadas de chuva. Quando a primeira mão tocou o braço da estranha passageira o aguaceiro começou! Choveu torrencialmente durante mais de uma semana! Choveu mais do que houvera chovido em toda a história de Redenção. Não havia riacho, rio, açude, tanque, aguada, que não estivesse transbordando.

Teresa fora instalada na melhor casa da cidade, tratada como rainha, ou melhor, como santa, pois ela trouxera a chuva. Houvera um milagre! Se o motorista fora o mártir, Teresa era a santa. Como explicar que saíra incólume de uma catástrofe que destruíra a praça, o jardim? Era santa sim e ponto final.

E assim, a moça bonita que saíra corrida de um bordel famoso da Capital, ameaçada de morte pela esposa de um grande empresário, viveu vida de rainha sem jamais trabalhar na cidade que a considerava Senhora das Águas, Santa das Chuvas.

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